Fui alertado para um texto de Jorge Miranda defendendo o "não", que supostamente estaria muito bem construído, e, ainda que tendo reservas sobre o que me disseram porque o Professor de Direito Constitucional não apresenta os seus melhores argumentos em qualquer circunstância que interfira com as ideias e interesses da igreja católica (vide a posição no mínimo curiosa que tem sobre o conteúdo dos preceitos constitucionais relativos à educação e ao ensino), li o texto assim que pude. E sobre o que está lá escrito tenho os seguintes comentários a fazer:
1. Se a IVG provoca traumas (o que se é certo que PODE acontecer não é certo que aconteça), é apenas e só um problema da mulher que a pratica, e não é assunto com relevância para o Estado. Essa possibilidade será certamente tida em linha de conta por quem tomar essa difícil decisão.
2. Não vou discutir se a IVG traduz desigualdades económicas e sociais. O que é um facto é que ninguém sabe em que elementos se sustenta Jorge Miranda para dizer que agrava desigualdades económicas e sociais. Para além disso, flagelo social não é de certeza porque não tem efeitos sobre terceiros.
3. O consumo de droga não é um flagelo social. A toxicodependência essa sim. Bem como a prostituição também não o é, desde que praticada por quem em real liberdade o entenda. O tráfico de seres humanos esse sim, é flagelo social.
E mesmo quanto à toxicodependência não me choca rigorosamente nada que ela seja considerada apenas um problema de cada um, e que eventuais actos criminosos a ela associados sejam tratados como devam ser: como puro e simples caso de polícia.~
4. Em qualquer caso, já percebi que Jorge Miranda provavelmente defende o ridículo modelo sueco ultra-repressivo quanto ao consumo de droga, e a ainda mais idiota (e de inspiração clara no feminismo mais radical) criminalização da procura de serviços de prostituição.
5. A atitude de esquerda e de progresso só pode ser uma: ser justo. Quer isso passe pela transformação da realidade, quer não. Quer isso se consubstancie na defesa dos mais pobres, ou dos mais ricos. Etc. E ser justo passa necessariamente por não punir quem decide fazer um aborto e por permitir a quem tome essa difícil decisão fazê-lo em certificadas condições de saúde e de higiene.
6. E o que está em causa não é se existe vida ou não. Isso nenhum referendo pode determinar, por razões que são mais que óbvias. O sentido da pergunta é claríssimo: se a mulher que aborta deve ser ou não punida, e se não sendo punida deve poder interromper a gravidez, repito, em certificadas condições de saúde e de higiene.
7. Dizer que combater as causas reais do aborto só é possível com uma modificação profunda das estruturas da sociedade e do estatuto jurídico do homem e da mulher é pura e simplesmente não concretizar um argumento. E não sabemos quais modificações profundas Jorge Miranda defende. Temo pelo pior, considerando a defesa intransigente que repetidamente faz das quotas de género.
8. Argumentar com o carácter insubstituível de todo o ser humano antes e depois do nascimento só tem um significado possível: que Jorge Miranda opta decididamente pelo feto considerando que a mulher que o pratica deve ser punida. E que tem por consequência manter o flagelo social (esse sim) do aborto clandestino. É que ser de esquerda implica combater realidades injustas. E esse flagelo, cujas vítimas são mulheres com menos posses, está a ser devidamente combatido com um voto SIM.
9. Não vale a pena tentar jogar com palavras e dizer que interrupção é um eufemismo para cessação. De facto, a palavra está em sentido jurídico, veja-se por exemplo a interrupção da prescrição, pela qual os prazos de prescrição voltam a contar do zero a partir daí.
10. Entrar na lengalenga de que é liberalização e não despenalização e que esta última seria a solução equivale a defender que se deveria manter o aspecto punitivo, designadamente através de contra-ordenações. Isso implica condescender com o aborto clandestino.
11. A lei actualmente em vigor foi uma solução de compromisso, abandonando-se o fundamentalismo católico ao salvaguardarem-se as situações verdadeiramente gritantes. A única ponderação que lhe está subjacente é essa e mais nenhuma.
12. A questão da eventual menoridade da mulher é uma questão de âmbito legislativo eventualmente discutível. Mas posteriormente. Não afecta a questão essencial.
13. Quem teve a ideia de inventar a argumentação supostamente a favor do SIM com base no direito ao desenvolvimento da personalidade ou no respeito pelo projecto de vida não devia estar bom da cabeça, decididamente. O que preclude a análise dos argumentos apresentados em contrário, com uma excepção: quando fala em relações que provocam a concepção e em responsabilidade na condução da vida sexual está muito claramente a demonstrar as ideias ultra-conservadoras que tem relativamente ao assunto, com a visão do sexo como algo de pecaminoso.
14. Como já atrás disse, o Estado autorizar estabelecimentos de saúde a praticar abortos é pura e simplesmente decorrência das exigências mais básicas de saúde e higiene públicas e de combate ao aborto clandestino. Nada tem a ver com o direito ao planeamento familiar.
15. Se admitir que não é crime praticar a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher dentro de estabelecimento de saúde legalmente autorizado redunda em legalizar, logo temos que concluir, a contrario, que Jorge Miranda, ao contrário do que atrás diz, defende que deva continuar a ser crime.
16. O Tribunal Constitucional não considerou a pergunta do referendo inconstitucional. E é quem na ordem jurídica portuguesa tinha competência para o fazer.
17. A questão do local só pode servir para iludir. Também, por exemplo, conduzir sem para tal se estar devidamente habilitado é crime, e só entidades devidamente reconhecidas podem proceder à habilitação. Conduzir habilitado por entidade não reconhecida é crime.
18. É um facto que o aborto é consequência da falta de instrução, de planeamento familiar, de emprego, de salário, de que a protecção da maternidade e paternidade que existe é a possível dentro dos recursos disponíveis, e não pode ser superior. Mais uma razão para não se punir quem o pratica, isto para não falar das devidas condições de saúde e higiene.
19. Mas a visão pecaminosa do sexo volta à carga. O aborto é consequência das "taras da sociedade" e da "comercialização do sexo". Cá temos o ultramontanismo no seu melhor: "não têm nada que abortar, é bem feita não tivessem estado na pouca-vergonha". Ou acha que alguém vai abortar como método anticoncepcional ? Isso é a mesma coisa que dizer que quem aborta fá-lo com gosto ou indiferença, o que no máximo dos máximos será coisa raríssima.
20. Dispensa-se a cantilena moralista da civilização materialista, individualismo e consumismo. É materialista quem quer, individualista quem quer, e consumista quem quer. Cada um é livre de tomar as suas opções, as quais dizem apenas respeito a si próprio na sua esfera privada.
21. A garantia de acesso a uma rede nacional de creches nada tem a ver com o assunto. E, aliás, assenta num esquecimento quanto ao esforço repetidamente feito pelos governos socialistas no aumento da rede pública de ensino pré-escolar. E, mais que isso, é algo de muito estranho vindo de quem vem, pois que Jorge Miranda tem defendido sistematicamente uma lógica de rede descentralizada que inclua os privados na rede pública...
22. Nunca li nenhum texto de Jorge Miranda onde defendesse medidas concretas sobre adequação do trabalho dos pais e das mães. Para além disso, o parágrafo final é demagógico: como constitucionalista, sabe melhor que eu que a realização dos direitos económicos, sociais e culturais depende no seu essencial das condições económicas e sociais, o que é totalmente diferente do que está em causa no referendo. E, repita-se, o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional o conteúdo da pergunta.